Nuno A. Proença
Secretário Técnico do Gabinete de Assessoria Jurídica, Compliance e Controlo do POCH
Se por ventura, com a entrada em vigor do novo Código dos Contratos Públicos (se é que o termo “novo” hoje ainda é adequado, tendo em consideração que se perspetiva para breve, a primeira grande revisão), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua atual redação, representou um “nova era” para o direito de contratação pública em Portugal, tanto do ponto de vista jurídico, como do ponto de vista dos, designados, “mercados públicos”, no âmbito do quadro jurídico-normativo inerente aos fundos comunitários a temática da “contratação pública” assume-se, hoje, como eixo central na elaboração de um processo de candidatura, cuja complexidade acresce à já, de si, intrincada teia jurídico-operacional que uma operação submetida a cofinanciamento comunitário tem que superar para ser aprovada.
Embora, o Código dos Contratos Públicos seja o mesmo na sequência dos quadros regulamentares do QREN (2007-2013) e do PT 2020 (2014-2020), a moldura jurídico-normativa que envolve o novo quadro comunitário representa-se, incomensuravelmente, mais exigente no exercício de verificação da conformidade legal dos procedimentos de contratação pública, quer no âmbito da análise ao processo de candidatura, quer no âmbito de verificações administrativas na execução da operação, quer no âmbito de procedimento de controlo à posteriori a que estão, consecutivamente, sujeitas as entidade beneficiárias dos fundos comunitários, podendo, no limite, não obstante o decurso do tempo, ter que proceder a restituições de apoios concedidos, entre outros motivos, por desrespeito da regras nacionais e comunitárias, designadamente, em matéria de contratação pública.
Neste sentido, nos termos do nº 2 do artigo 26.º do Decreto-lei n.º 137/2014, de 12 de setembro, compete às Autoridade de Gestão verificar a conformidade das despesas com a legislação aplicável, com o Programa Operacional e com as condições de apoio da operação.
Complementarmente, a alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do mesmo normativo legal estabelece que compete à Comissão Diretiva dos Programas Operacionais garantir o cumprimento dos normativos aplicáveis em matéria de contratação pública, sendo que, as entidades beneficiárias ficam obrigadas a organizar um processo técnico da operação cofinanciada, do qual devem constar “obrigatoriamente (…) todas as peças que compõem os procedimentos de contratação pública relacionadas com a operação cofinanciada, incluindo os respetivos contratos celebrados” (cfr.n.º2 do art.8.º da Portaria 60-A/2015, de 2 de março, na sua atual redação) – sublinhado nosso.
Recai, portanto, nas Autoridades de Gestão o dever de verificar, à posteriori, os documentos que fundamentam a adjudicação e os contratos celebrados, acompanhando a legalidade e regularidade da sua execução, sendo que o desrespeito pelo disposto na legislação europeia e nacional aplicável em matéria de contratação pública constitui, in extremis, um dos fundamentos suscetíveis de determinar a redução do apoio à operação (alínea g) do n.º 2 do artigo 23.º do Decreto-lei n.º 159/2014, de 27 de Outubro, na sua atual redação).
Acresce que de acordo com o disposto na alínea c) do n.º 4 do artigo 125.º do Regulamento (UE) n.º 1303/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, as Autoridades de Gestão devem estabelecer medidas antifraude eficazes e proporcionadas, constituindo a contratação pública uma das áreas onde se considera existir maior incidência do risco de ocorrência de fraude.
Neste domínio, há portanto que ter em conta, não só a legislação nacional (designadamente, o Código dos Contratos Públicos, como instrumento legal incontornável para qualquer entidade beneficiária), mas também todo o enquadramento comunitário que rege todo o quadro jurídico-normativo dos fundos comunitários (e.g. Regulamento UE, Euratom n.º 966/2012, Regulamento CE n.º 1083/2006, de 11 de julho de 2006, etc…), desde disposições de caráter financeiro aplicáveis ao orçamento geral da União e às regras setoriais aplicáveis ao cofinanciamento da União, mas também, esta de importância extrema para qualquer entidade que queira submeter um projeto a cofinanciamento, as (designadas) tabelas COCOF (“Tabelas de correções financeiras em caso de incumprimento das regras de contratação pública detetado pela Autoridade de Gestão”), que fecham a arquitetura processual e substancial inerente à analise de qualquer contrato público sujeito a escrutínio por um exercício de controlo por entidades públicas integrantes do modelo de governação dos fundos europeus.
Consequentemente, muito embora o Código dos Contratos Públicos tenha sofrido, entre os dois períodos de programação, alterações legislativas pontuais, o quadro normativo inerente ao enquadramento jurídico de fiscalização em matéria de contratação pública das operações cofinanciadas tornou-se numa vertente essencial dos processos administrativos de análise de candidatura e de execução das mesmas, que não pode ser negligenciado pelas autoridades, sob pena de violação grosseira das suas próprias competências atribuídas pela lei e, em última instância, de sancionamento do próprio Estado-Membro.
Neste contexto, a análise da conformidade verificação da conformidade legal dos procedimentos de Contratação Pública, com especial incidência à luz do Fundo Social Europeu (dada a componente primordial de bens e serviços), curiosamente, pouco ou nada se relaciona com as temáticas habituais a que tradicionalmente a comunidade jurídica dedica sendo a opinis doctorum mais focada, compreensivelmente, para as questões controvertidas que mais recorrentemente são sujeitas a escrutínio judiciário, criando, por este facto, um vazio doutrinal nas questões que mais recorrentemente preocupam as entidades beneficiárias, que no caso de entidades privadas, que apenas passam a qualificar-se como entidades adjudicantes por força da financiamento maioritário pelas Autoridades de Gestão (Estado), à luz da alínea a) do n.°2 do artigo 2° do CCP (e.g. escolas privadas).
Cumpre, portanto, a este nível chamar à colação novamente as já referenciadas tabelas COCOF na medida em que, muito embora o elenco de irregularidades e inconformidades previstas no respetivo Anexo seja extenso (contrariamente ao anterior quadro comunitário QREN em que as anteriores tabelas previam um elenco bem menos exigente – vide COCOF 07/0037/03-PT, de 29/11/2007), tal positivação não é exclusiva tendo as Autoridades de Gestão poder para, no âmbito do poder discricionário da Administração deliberar sobre a correção financeira a aplicar em função da gravidade da irregularidade (violação de formalidades ou atos processuais materiais) e dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, podendo as correções financeiras variar entre 5%, 10%, 25% e 100% da despesa apresentada.
Consequentemente, o regime do ajuste direto, dado o recurso sistemático a este procedimento pré-contratual, representa um dos focos problemáticos que mais concorre para a aplicação de correções financeiras, sendo que, neste particular, assumem tJanto protagonismo os procedimentos de regime geral, como também os de regime simplificado, estes últimos, fonte de análise frequente dada a teia de situações comunicadas, que atendendo à ausência de fontes normativas, doutrinais e judiciárias impõe uma crescente responsabilidade na adoção de critérios uniformes e razoáveis, face princípio da unidade da despesa previsto no art.16° do Decreto-Lei n.°197/99, de 8 de junho, de identificação e correção das situações que se possam subsumir a “fracionamento de despesa” (ou fracionamento de contratos, na linguagem comunitária), a que acrescem as hipotéticas violações do disposto no art.129° do CCP, por força de recurso sistemático e indiscriminado ao ajuste direto simplificado, resultando, parte das vezes, em materialização de um contrato único (embora não reduzido a escrito) sucessivamente renovável e, até, com revisão de preços.
Assume, ainda, especial interesse o estudo exaustivo de contratos qualificados, nos termos do CCP, como contratos excluídos (a este exemplo, a concretização do conceito indeterminado “contrato similar a contrato de arrendamento” previsto na alínea c) do n.°2 do art.4° do CCP, que parta, mas não se esgote, na interpretação meramente fiscal da conceptualização das designadas “paredes nuas”, adequada à realidade de certas entidades beneficiárias), bem como – a realidade impõe – (pelo menos) a tentativa de adequação axiológica e interpretação teleológica do n.°1 do art.5° do diploma em referência para determinados contratos que na aparência são prestações tipicamente submetidas à concorrência mas, analisando as circunstâncias de facto que originaram a celebração dos mesmos, não se pode retirar outra conclusão que não seja a “ausência de mercado” naquela localidade ou região isolada, materializando (potencialmente) uma situação de contratação excluída no “contexto da sua própria formação”.
Em suma, o exercício jurídico-hermenêutico de verificação da conformidade legal dos procedimentos de Contratação Pública na ótica dos quadro comunitário, exige, hoje mais do que nunca, ter bem presente que, ainda à luz da teoria kelseniana, que a interpretação jurídica é, cada vez mais, necessariamente criadora de Direito, sendo que “se intencional e normativamente o direito deixou de identificar-se com a lei, também metodologicamente a realização do direito deixou de ser mera aplicação das normas legais e manifesta-se como o acto judicativamente através do qual, pela mediação embora do critério jurídico possivelmente oferecido por essas normas mas com ampla actividade normativamente constitutiva, se cumprem em concreto as intenções axiológicas e normativas do direito, enquanto tal” (CASTANHEIRA NEVES, António, in “O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica” I, Coimbra Editora, 2011), que todas as entidades envolvidas devem ter bem presente para que o exercício da interpretação jurídica não se resuma a uma prática medíocre de mera aplicação das normas em função da sua leitura, invertendo-se a ratio do elemento literal como ponto de chegada (e não de partida) do exercício jurídico-hermenêutico.
Excelente artigo.